Nelson Freire
Na ausência das palavras não há necessariamente o silêncio – apenas a certeza do imponderável. Essa parece ser a lição principal da arte do pianista brasileiro Nelson Freire. Avesso a entrevistas – e à tarefa de definir aquilo que no piano é natural e espontâneo – ele deixa escapar um sorriso maroto ao dizer que tem brigado com as palavras “desde sempre.” Mas sua linguagem sobre o palco, no entanto, é fluida e o conduziu à formação de uma gramática própria, construída ao longo de mais de 50 anos de uma carreira que o levou aos principais palcos de todo o mundo.
“Sou mineiro de alma, mas carioca de coração”, define Freire sobre sua infância. “Nesta cidade me criei, trazido por minha família de Boa Esperança, Minas Gerais. “Aqui encontrei as duas grandes mestras que me encaminharam no mundo da música, Nise Obino e Lúcia Branco.” Na adolescência seguiu em direção à Europa, para estudar com Bruno Seidlhofer em Viena. “O Rio me viu crescer em todos os sentidos, pessoais e profissionais e é ainda hoje a cidade para onde volto, minha casa”, diz. Foi também na cidade que o pianista conheceu uma das principais influências de sua carreira, Guiomar Novaes. “Ouvi-la sempre provocou em mim impacto – e surpresa. Ela jamais se repetia. A cada apresentação sua, tinha-se a sensação de que aquelas obras acabavam de ser compostas. Tudo o que fazia era tão convincente e natural que parecia impossível de ser de outra maneira.”
Freire refere-se a Guiomar, mas poderia estar falando de si próprio. Nas últimas décadas, seus recitais – assim como a parceria com maestros como Kurt Masur, Riccardo Chailly, Charles Dutoit, Colin Davis, Lorin Maazel ou Pierre Boulez –, no palco e em gravações pra o selo Decca/Universal, tem sido recebidos com encanto por público e crítica. Seu registro dos concertos de Brahms, por exemplo, foi indicado ao Grammy e recebeu da revista inglesa Gramophone o prêmio de melhor disco do ano, “o Brahms que esperávamos ansiosamente”. Já o disco dedicado a Chopin recebeu o Diapason D’Or e vendeu, apenas no Brasil, mais de 40 mil cópias. Escrevendo sobre o álbum com obras de Debussy, o crítico João Marcos Coelho atribuiu ao pianista “plena forma física e uma total maturidade artística”, capaz de “revelar os segredos” do compositor francês. Para um artista que, há pouco tempo, via com desconfiança gravações em estúdio, seu legado discográfico é notável – e será aumentado em breve por um volume todo dedicado à música brasileira, com ênfase em Villa-Lobos e alguns de seus contemporâneos.
Freire diz não gostar de fazer balanços. Mas a memória, quando ele está sobre o palco, é parte intrínseca da interpretação musical. É como se, a cada interpretação, um mosaico de lembranças, capazes de nos transportar a outras épocas, dialogasse com a certeza de uma abordagem sempre renovada. E entramos assim em um mundo particular, no qual fica clara a recusa do virtuosismo como meta, a exploração máxima dos coloridos sonoros, o gosto pelo detalhe e a capacidade de, ao mesmo tempo, não perder de vista a arquitetura das obras. Tudo isso ele nos oferece a cada oportunidade em que sobe ao palco. Até que, em certo momento é preciso reconhecer os limites da palavra. E celebrá-los através da música.
Texto de João Luiz Sampaio